sexta-feira, 22 de março de 2013

A Heresia Colossense

Estabelecer os antecedentes religiosos históricos da heresia cristã não é tarefa fácil, visto
que alusões ocultas em tais conceitos como “tradição-paradosin” (2:8), “plenitude-plhrwma
(1:2, 9, 10), “filosofia-filosofia” (2:8), “comer e beber-brwsei” (2:16), “principados e
potestades-arcai exousiaς” (2:15) e “elementos do mundo encontram correspondência tanto no
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“judaísmo gnóstico” quanto no “sincretismo helenístico”.13 Ambos são, na verdade, igualmente
utilizados por comentaristas para definir a procedência da gnose de Colossos. Para o propósito de
nosso estudo, entretanto, não necessitamos discutir a respeito da procedência ideológica da
“filosofia” (2:8) de Colossos. Será suficiente reconstruir o esboço principal de seus ensinos na
base de citações curtas e palavras-chaves citadas por Paulo no capítulo 2 no contexto de sua
admoestação aos crentes.
O falso ensino que Paulo refuta em Colossenses é caracterizado por um erro teológico e
prático. Teologicamente, a “filosofia” Colossense (2:8) estava competindo com Cristo pela
lealdade do homem. Sua fonte de autoridade, segundo Paulo, era “tradição-paradosin humana”
(2:8) e seu alvo era conceder verdadeira “sabedoria-sofiaς” (2: 3, 23), “conhecimento-gnwsin
(2: 2, 3; 3:10), e “entendimento-sunesei” (1:9; 2:2). Para alcançarem tal conhecimento, os
cristãos eram instados a prestar homenagem às principalidades cósmicas (2:10, 15) e aos
“elementos do universo-ta stoiceia tou cosmou” (2:8, 18, 20).


O que precisamente Paulo queria dizer com a última frase é ainda muito discutível. Alguns
interpretam “os elementos-stoicheia” como “os ensinos elementares a respeito de Deus
pertencentes a este mundo” que estavam presentes em forma rudimentar tanto no judaísmo como
no paganismo.14 Outros os vê como “os elementos básicos deste mundo” particularmente a terra,
o ar e o fogo, dos quais pensava-se que tudo derivava.15 Muitos exegetas modernos, contudo, têm
adotado uma interpretação personificada de stoicheia (especialmente na base da passagem
paralela em Gálatas 4:3, 9; cf. 3:19), identificando-as com os mediadores angélicos da lei (Atos
7:53; Gál.3:19; Heb. 2:2) e com os deuses astrais pagãos que, se acreditava, estavam no controle
dos destinos da humanidade.16 Para ganharem proteção destes poderes e principalidades
cósmicas, os “filósofos” colossenses instavam os cristãos a que oferecessem adoração cultual aos
poderes angélicos (2:15, 18, 19, 23) e que seguissem costumes ritualísticos e ascéticos (2:11, 14,
16, 17, 21, 22). Por este processo assegurava-se o acesso e participação na divina “plenitude-
plhrwma” (2:9, 10, cf.1:19). O erro teológico consistia então, basicamente, em interpor
mediadores angélicos inferiores no lugar da própria Cabeça (2:9, 10, 18, 19).
O resultado prático destas especulações teológicas era a insistência com estrito ascetismo.
Estes consistiam no “despojo do corpo da carne” (2:11) (aparentemente significando afastamento
do mundo);17 rigoroso tratamento do corpo (2:23), proibição de provar ou tocar certos tipos de
alimentos e bebidas (2:16, 21) e a cuidadosa observância de dias e épocas sagradas—festivais,
lua nova, sábado (2:16). Os cristãos presumivelmente eram levados a acreditar que ao se
submeterem a esses costumes ascéticos, não estavam rendendo sua fé em mashiach, mas recebendo
proteção adicional e certificando-se de pleno acesso à plenitude divina. Isto pode ser deduzido
tanto da distinção que faz Paulo entre viver “segundo os elementos do universo” e “segundo
Cristo” (2:8) e da insistência do Apóstolo na supremacia do mashiach encarnado “em quem habita
corporalmente toda a plenitude da divindade” (2:9), portanto o cristão alcança “a plenitude-
plhrwma” da vida não por intermédio dos elementos do universo, mas de mashiach, “que é a
cabeça de todo o principado e potestade” (2:10; cf. 1:15-20; 3:3).
Baseados neste breve esboço, já podemos estabelecer que o sábado é mencionado na
passagem não no contexto de uma discussão direta a respeito da obrigação da lei, mas sim no
contexto de crenças e práticas sincretistas (que incorporava elementos do Velho Testamento,
indubitavelmente para prover justificativas para seus princípios ascéticos)18 advogados pelos
“filósofos” colossenses. Não somos informados de que tipo de observância de sábado esses
mestres promoviam, todavia, na base da ênfase que davam à escrupulosa adesão a
“regulamentos”, aparentemente o dia devia ser observado de um modo rigoroso e supersticioso. É
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possível, de fato, como discutiremos mais tarde, que crenças astrológicas atribuídas ao dia de
Saturno tornassem a observância deste dia ainda mais supersticiosa.
Se, então, como se reconhece geralmente, Paulo em Colossenses está refutando, não a
posição legalística judaica ou cristã-judaica, mas sim uma “filosofia” sincretística que
incorporava, entre outros, elementos judaicos,19 é lícito utilizar esta passagem para definir a
atitude básica de Paulo para com o sábado? A condenação que faz Paulo de um uso pervertido de
uma observância religiosa constitui fundamento válido para concluir que o Apóstolo libera a
todos os cristãos de observá-lo? Mais importante ainda, Colossenses 2:16 e 17 realmente deixa
implícito que Paulo pensava e ensinava que os cristãos não mais estavam sob a obrigação de
observar qualquer dia santo? Antes de considerarmos estas perguntas, necessitamos estabelecer
que papel a lei exerce na refutação que faz Paulo da heresia colossense. Está o Apóstolo, por
exemplo, referindo-se à lei moral e/ou cerimonial quando fala do “documento escrito-
ceirografon” que Elohim “tirou do meio de nós, cravando-o no madeiro” (2:14)? Este esclarecimento
nos ajudará a estabelecer se na mente de Paulo o sábado era parte do que foi cravado na cruz.
O QUE FOI CRAVADO NO MADEIRO?
Para compreendermos a linguagem legal de Colossenses 2:14, é necessário primeiramente
apreendermos os argumentos fornecidos por Paulo nos versos precedentes para combater a
“filosofia” colossense. Notamos que falsos mestres estavam “enganando” (2:4) os cristãos para
acreditarem que a observância de “regulamentos-dogmata” era necessária para cortejar a
proteção daqueles seres cósmicos que supostamente poderiam ajudá-los a participar da plenitude
e perfeição da divindade. Para opor-se a este ensino, Paulo realça duas verdades vitais. Primeiro,
lembra aos colossenses que em mashiach, e nEle somente, “habita corporalmente toda a plenitude da
divindade” (2:9) e, portanto, todas as outras formas de autoridade que existem estão subordinadas
a Ele, “que é a cabeça e todo principado e autoridade” (2:10). Segundo, o Apóstolo reafirma que
é somente em mashiach e por intermédio dEle que o crente pode “chegar à plenitude da vida” (2:10),
porque Cristo não somente possui a “plenitude da divindade” (2:9) mas também provê a
plenitude da “redenção” e “perdão de pecados” (1:14, 2:10-15; 3:1-5).
A fim de explicar como Cristo estende “perfeição” (1:28; 4:12) e “plenitude” (1:19; 2:9) ao
crente, Paulo, como persuasivamente Herold Weiss demonstra, “não recorre à lei, mas ao
batismo”.20 Isto representa uma variante significativa, pois a explicação da significação da lei é
sempre parte integrante da apresentação que faz Paulo do evangelho. O fato então que no
contexto de Colossenses 2 o “termo “lei” (nomouς) se encontra ausente . . . da controvérsia”21
corrobora o que dissemos anteriormente, a saber, que a heresia colossense não se baseava no
costumeiro legalismo judaico, mas sim nos incomuns (sincretísticos) tipos de regulamentos
(dogmata) ascéticos e cúlticos, que minavam toda a suficiência da redenção do mashiach.
Para combater esses falsos ensinos Paulo escolheu exaltar a centralidade do mashiach
crucificado, ressurreto e enaltecido, explicando como a perfeição cristã é a obra de Elohim que
estende até o cristão os benefícios da morte e ressurreição do mashiach por intermédio do batismo
(2:11-13). Os benefícios do batismo são concretamente apresentados como o perdão de “todas
nossas transgressões” (2:13; 1:14; 3:13), o que resulta em ser “vivificado” em mashiach (2:13). A
reafirmação do perdão de Elohim , conquistado por mashiach na cruz e estendido pelo batismo ao
cristão, constitui, deveras, a resposta básica de Paulo àqueles que procuram alcançar a perfeição
submetendo-se a “regulamentos”. Para enfatizar a certeza e plenitude do perdão divino (já
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declarado em 2:13), o Apóstolo utiliza em 2:14 uma metáfora legal, isto é, aquela de Elohim como
um juiz que “tirou . . . removeu (e) cravou na cruz . . . o documento escrito-ceirografon”.
Que Paulo queria dizer com cheirographon (termo usado na antiguidade significando
“acordo escrito” ou “certificado de débito”?)22 Estava ele se referindo à Lei Mosaica com suas
ordenanças (tois dogmasin), declarando assim que Elohim cravou-a no madeiro? Se se adotar esta
interpretação, há legítima possibilidade de o sábado poder incluir-se entre as ordenanças cravadas
no madeiro. De fato, certos autores mantêm esta posição.23 Contudo, além das dificuldades
gramaticais,24 “dificilmente parece de Paulo”, escreve J. Hyby, “representa a Elohim crucificando a
“santa” (Rom.7:6) que era a Lei Mosaica”.25 Além do mais, esta posição não se somaria, mas
diminuiria o argumento de Paulo designado a provar a plenitude do perdão de Elohim.
Proporcionaria aos cristãos a retirada da lei moral e/ou cerimonial a certeza do perdão divino?
Dificilmente. Somente deixaria a humanidade sem princípios morais. Não se remove a culpa
destruindo códigos legais.
A maioria dos comentaristas interpreta o cheirographon ou como o “certificado de dívida”
resultado de nossas transgressões ou um “livro contendo o registro de pecado” usado para a
condenação da humanidade.26 Ambas possibilidades, que são substancialmente semelhantes,
podem ser apoiadas por literatura rabínica e apocalíptica. “No judaísmo”, como declara E. Lohse,
“a relação entre o homem e Elohim era freqüentemente descrita como a existente entre o devedor e
seu credor”.27 Por exemplo, um rabino disse: “Quando o homem peca, Elohim escreve o débito de
morte. Se ele se arrepende, o débito é cancelado (isto é, declarado invalidado). Se ele não se
arrepende, o que está registrado permanece genuíno (válido)”.28 No Apocalipse de Elias acha-se a
descrição de um anjo segurando um livro, explicitamente chamado de cheirographon, no qual os
pecados do vidente estão registrados.29 Baseados nestes e outros exemplos similares, é bastante
óbvio que cheirographon é, ou um “certificado de dívida de pecado” ou o “livro de registro de
pecados”, mas não a Lei de Moisés, pois esta, como sabiamente assinala, “não é um livro de
registros”.30
O que Paulo está dizendo, então, com esta metáfora ousada é que Elohim tem “tirado”,
“removido” e “cravado na cruz” por intermédio do corpo de mashiach (o qual em certo sentido
representa a culpa da humanidade), o cheirographon, o instrumento para a lembrança do pecado.
A base legal desse instrumento era a “cédula vigente-tois dogmasin” (2:14), porém o que Elohim
destruiu na cruz não foi a base legal (lei) para nosso embaraço no pecado, mas o registro escrito
de nosso pecados.31 Ao destruir o registro de pecados, Elohim removeu a possibilidade de que
jamais se façam a cobrança contra aqueles que foram perdoados.32
Esta posição é também apoiada pela cláusula “e a tirou do meio de nós-
cai auto hrcen ec tou mesou” (2:14). Tem sido demonstrado que “o meio era a posição
ocupada ao centro da corte ou assembléia pela testemunha de acusação.33 No contexto de
Colossenses, a testemunha de acusação é o cheirographon, que Elohim, em mashiach apagou e
removeu da corte. Não se pode deixar de sentir como, por intermédio dessa vigorosa metáfora,
Paulo está reafirmando a plenitude do perdão de Elohim provido por mashiach no madeiro. Ao destruir a
evidência de nossos pecados, Elohim também “desarmou os principados e potestades” (2:15), uma
vez que não é mais possível que funcionem como acusadores dos irmãos. (Apo. 12:10) Não há
necessidade, portanto, de os cristãos se sentirem incompletos e buscarem participar na plenitude
da divindade (pleroma) por intermédio de “regulamentos-dovgmata”. Aqueles que através do
batismo morreram e foram vivificados em mashiach, podem agora viver na certeza de sua redenção e
perdão. Portanto, os poderes e principados não mais precisam preocupá-los.
Vimos que em todo este argumento, a Lei, como declara Weiss, “não exerce papel
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algum”.34 Qualquer tentativa de ler, portanto, no cheirographon uma referência ao sábado ou a
qualquer outra ordenança do Velho testamento é totalmente injustificável. O documento que foi
cravado no madeiro não continha leis morais ou cerimoniais, mas sim o registro de nossos pecados.
Não é verdade que mesmo hoje a memória do pecado pode criar em nós um senso de
imperfeição? A solução para este senso de incapacidade, segundo Paulo, deve ser encontrada não
no submeter-se a um sistema de “regulamentos”, mas aceitando o fato de que na madeiro (cruz) Elohim
apagou nossos pecados e concedeu-nos completo perdão. Podemos concluir, então, dizendo que
Colossenses 2:14 reafirma a essência do evangelho—as Boas Novas de que Elohim cravou na madeiro
o registro e a culpa de nossos pecados—porém nada tem a dizer a respeito da lei e do sábado.

     Livro Do Sabado Para o Domingo Samuele Bacchiocchi

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